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O futuro passou por lá

por Moacyr Grechi



Para os que vivem na noite e estão voltados para os primeiros sinais da manhã – e tal é a atitude básica dos cristãos, esses vigiais da história, como os queria seu Senhor – a Nicarágua aparece hoje como um ponto de referência. Os tempos novos do continente já lançam para aqueles lados também seus clarões alvissareiros. Esse pequeno país, com seus 2 milhões e meio de habitantes, já se banha nos primeiros raios do Sol. Para quem entra nos seus 130 mil km vindo de outros países da América Latina, sobretudo dos países da América Central, como Guatemala, San Salvador e Honduras, a Nicarágua se apresenta como uma área libertada. Aí respira-se livre e descontraidamente. Essa é a primeira sensação que dá. Há algo de diferente no ar. Os soldados não fazem mais medo. O povo movimenta-se alegre e cheio de vida nas ruas.


De fato, a revolução foi um empreendimento popular. Nela participou o povo todo, em massa: mulheres, estudantes, crianças. E é com justa razão que agora esses, que destruíram o cipoal da opressão somozista, semeiam agora no entusiasmo as sementes luminosas da justiça e da paz. O trabalho é árduo – pode-se ver – mas assumindo na liberdade e esperança. A revolução não veio grátis para ninguém. Custou a todas as camadas da população lágrimas, sangue e morte. Não foi tanto o povo nicaraguense que apoiou a Frente Sandinista. Antes é o contrário que é mais verdade.


Foi a união dos revolucionários com o povo que propiciou a união entre as várias forças evolucionárias. De fato, a partir do momento em que o povo se tornou o centro dos projetos e estratégias, então se deu a união das diferentes tendências revolucionárias. E foi a partir da união dessas é que a insurreição se tornou invencível. Esse é o mais belo exemplo que dão os sandinistas a todos os que querem lutar pelo povo e a seu lado em nossa América Latina.

Um traço para o qual um cristão se mostra particularmente sensível na revolução nicaraguense é seu caráter humanitário.


A Frente Sandinista em momento algum da revolução quis recorrer à tortura como método de guerra. Já vitoriosa, não quis ceder ao espírito de revanche, quando o povo carregava ainda no seu corpo as feridas e o sangue da brutalidade da Guarda Nacional. Nem sequer com a pena de morte. E isso também representa um grande ensinamento para os que lutam por um futuro novo: o último gesto de uma revolução não é a violência, mas o perdão. Só assim se rompe a lógica da violência e se inaugura uma lógica diferente, adequada a uma nova sociedade. E essa é uma velha lição cristã (mas tão nova em sua prática): a violência só pode ser o último ato de uma sociedade bestial, mas só o perdão pode ser o primeiro ato, o ato de fundação, de uma sociedade realmente humana.


Essa também foi uma revolução da religião, neste exato sentido: que a religião voltou a ser força histórica, fator de transformação. É preciso não perder de vista a novidade que aos olhos cristãos representa a revolução nicaraguense: pela primeira vez na história os cristãos participaram de forma massiva e decisiva no processo revolucionário e com o aval da hierarquia. E agora, no ingente esforço de reconstrução material do país, os cristãos estão sendo chamados a uma contribuição importante. Sobretudo os padres, devido à sua capacitação intelectual e crédito popular. Mas isso não vai sem tensões quanto ao lugar e limites do papel da Igreja nesta reconstrução. De todos os modos, a Igreja latino-americana aprendeu que seu compromisso não é com o poder, mas com o povo. A Igreja da Nicarágua está tentando, como entende e como consegue, viver a permanente opção pelos pobres num contexto de uma sociedade já libertada – de e em vias de libertação – para – só para lembrar as categoriais de Puebla. Não se trata de se opor ao poder sandinista só porque é poder. E nem de consagrá-lo, só porque sandinista. Trata-se de persistir na aliança sem retorno com o povo nicaraguense. A proximidade e a distância do poder só podem ser ditadas a partir do interesse do povo. A Igreja deixou de ser serva do poder, para ser serva do povo, como seu Senhor.


A Igreja da Nicarágua está diante do difícil desafio histórico: o de dar ao mundo a demonstração de como opera a fé do Evangelho na fase pós-revolucionária. Mas não há dúvida: uma Igreja que soube como participar da revolução saberá também coo participar da construção de uma nova sociedade.


(...)


“Como não entendeis o tempo presente? Mas por que não julgais vós mesmos do que é justo? (Lucas, 13, 56-57)


*Prefácio para o livro Nicarágua livre: o primeiro passo, de Frei Betto, 1980, Civilização Brasileira


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